Poucas horas antes de ser brutalmente assassinada pelo ex-noivo, Caio Nascimento, a jornalista Vanessa Ricarte, de 42 anos, tentou buscar proteção na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam), em Mato Grosso do Sul. No entanto, o atendimento que recebeu foi marcado por frieza e negligência. Em áudios enviados a uma amiga, aos quais a imprensa teve acesso, Vanessa relatou sua frustração com o despreparo das autoridades ao lidar com sua situação de risco iminente.
“Imagine uma mulher sem apoio nenhum”
Em um dos áudios, a jornalista expressou sua decepção com a abordagem da delegacia.
“Estou impactada com o atendimento da Casa da Mulher Brasileira. Eu, que sou instruída, escolarizada, fui tratada dessa maneira… Imagine uma mulher vulnerável, sem rede de apoio nenhuma. São essas que morrem, que entram para a estatística do feminicídio”, desabafou.
Vanessa também reclamou do comportamento da delegada responsável pelo atendimento. Segundo ela, a profissional foi fria, impaciente e constantemente a interrompia enquanto ela tentava relatar sua situação. “Fui falar com a delegada, tentei explicar tudo, mas ela foi prolixa, seca, me cortava o tempo todo”, contou.
Sem acesso ao histórico do agressor
Durante sua visita à Deam, Vanessa pediu informações sobre o histórico de violência de Caio Nascimento. Ela havia descoberto que ele já tinha outras denúncias e queria entender a gravidade dos casos anteriores. No entanto, a delegada negou a informação, alegando sigilo dos processos.
Dados do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul revelam que Caio respondia a 14 processos de violência doméstica, um histórico que poderia ter sido determinante para reforçar a necessidade de medidas protetivas urgentes.
“Parece que tudo protege o agressor”, desabafou Vanessa. “Ela me deu o telefone da oficial de justiça, passou a senha do processo para eu acompanhar, mas disse que adicionar informações ao boletim de ocorrência não faria diferença, pois já estava no Judiciário.”
Uma falha que pode ter custado sua vida
A jornalista também lamentou a falta de compreensão sobre a gravidade da situação. Em um dos áudios, ela contou que precisava voltar para casa, onde estava seu ex-noivo. A resposta que recebeu foi surpreendente:
“Faz dois dias que não tomo banho, não troco de roupa. Aí a delegada disse: ‘Então vai pra casa’. Perguntou se eu já tinha avisado ele e sugeriu que eu mandasse uma mensagem pedindo para ele sair. Eles não entendem a dimensão do problema.”
Na noite de 12 de fevereiro, poucas horas depois desse atendimento negligente, Vane
ssa foi assassinada a facadas dentro de casa. Seu ex-noivo, Caio Nascimento, foi preso em flagrante pela Brigada Militar.
Vanessa Ricarte: segunda vítima de feminicídio em MS em 2025
Além de jornalista, Vanessa era servidora do Ministério Público do Trabalho (MPT). O caso gerou grande repercussão e levantou questionamentos sobre a eficácia do sistema de proteção às mulheres vítimas de violência doméstica. A história de Vanessa se soma a um número crescente de feminicídios no Brasil, um país onde muitas mulheres denunciam a violência, mas encontram um sistema ineficaz para protegê-las.
Horas antes de ser morta, Vanessa também compartilhou seu estado emocional.
“Estou esgotada mentalmente, perdida. Sabe quando você está decepcionada? Me sentindo culpada porque fui registrar o boletim de ocorrência hoje de madrugada.”
Investigação sobre o atendimento prestado
O delegado-geral da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul, Lupérsio Degeroni Lúcio, anunciou a abertura de um procedimento para apurar possíveis falhas no atendimento da Deam.
“Por determinação do governo do Estado e do Secretário de Justiça e Segurança Pública, ordenei a instauração de um procedimento para verificar falhas nesse atendimento. A Polícia Civil sempre estará ao lado das vítimas e de seus familiares”, afirmou o delegado-geral.
O Ministério das Mulheres também tomou providências e solicitou à Corregedoria da Polícia Civil de Mato Grosso do Sul a abertura de uma investigação sobre o atendimento prestado.
“Vanessa relatou, em áudio, que comunicou à Deam sua decisão de voltar para casa, onde estava seu agressor. O protocolo de avaliação de risco indica que esse percurso deveria ter ocorrido com escolta da Patrulha Maria da Penha.”
Uma equipe do Ministério das Mulheres chegou a Campo Grande na noite de sábado (15) para apurar os fatos. Entre os integrantes estão a ouvidora Grazielle Carra Dias, a diretora de Proteção de Direitos, Pagu Rodrigues, e a chefe de gabinete da ministra, Kátia Guimarães.
A impresna entrou em contato com o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul e com o Ministério Público para esclarecer a situação, mas até o fechamento desta matéria, não obteve resposta.
Feminicídio: um problema que persiste
O caso de Vanessa Ricarte reforça a realidade alarmante do feminicídio no Brasil. Muitas mulheres denunciam, buscam ajuda e, ainda assim, encontram portas fechadas. A impunidade e a ineficiência no atendimento aumentam os riscos, transformando pedidos de socorro em estatísticas trágicas.
Enquanto não houver mudanças reais na abordagem e proteção às vítimas de violência doméstica, casos como o de Vanessa continuarão a se repetir, deixando para trás histórias de vidas interrompidas por negligência e falta de segurança efetiva.